domingo, 2 de maio de 2010

4 corpos e um amor inacabado

Naquele toca-discos antigo o vinil continuava a tocar, soando as notas de um passado amorfo. Tic-tac-tic-tac, ainda ouço o relógio que te mandava sempre ir embora, logo naquelas horas que o que a gente mais queria era ficar. Sempre que você vinha trazia a chuva, que molhava sempre os pés de toda a gente que andava lá fora, que sentiam sempre o sangue da sua ferida na água que corria. Era ferida velha, ferida branca, que doía só quando você vinha. Meu sorriso também vinha contigo, com a garrafa de cerveja quente no tempo frio, pra esquentar o coração com coisa ruim, você dizia.
Tinha também aquele sábado que ficava com cara de domingo, no dia em que as almas resolviam descansar só pra deixar a gente viver em paz. Era sempre você que trazia aquele cheiro de cidade empobrecida, de gente quieta e sem ter pra onde ir. Pombas. Ratos. Restos. Restos de mim e de você, sempre ali, inclinados pra ver o que tinha lá fora na calçada. Sei que nunca fui cautelosa com as palavras, por isso, hoje te digo, por isso nunca quis que me fizesse perguntas. Com as palavras, a gente mente, e eu só queria ter a chance de não falar.
Hoje aquilo que de mim só você sabia, já não é mais, e eu queria poder te contar. Talvez um dia você descubra que a vida não é uma só, a vida é múltipla, a vida não é uma transformação de algo permanente. Você vai descobrir no corpo daquela gente sem cabeça que nem sempre tudo tem que fazer sentido, que nem sempre um braço serve pra abraçar e uma perna pra andar. Aqueles corpos esquizofrênicos, nas suas não-totalidades, um dia vão te mostrar que não é porque uma coisa existe, que ela tem que: ser. Você vai se sentir pesado quando aqueles corpos passarem a ter cabeça, porque o olhar machuca, e você vai descobrir que um corpo é bem mais bonito de se ver sem a sua parte racional, e vai ter vontade de ser só um corpo também, um corpo que fala, um corpo que sente, um corpo que é.
Você descobrirá que a verdade é sempre a falta, e vai ter vontade de sumir quando me encontrar na sua porta esperando ter de volta um corpo de mim que você levou.

sábado, 1 de maio de 2010

De quando eu tinha doze anos

Sei
Que o que te trouxe até aqui
Foi a angústia
De não ter onde ficar

E que agora
Mesmo que você não queira
Sabe que aqui
É o seu lugar